Teses Defendidas
Governar a vida na rua. Ensaio sobre a bio-tanato-política que faz os sem-abrigo sobreviver.
29 de Junho de 2017
O fenómeno dos sem-abrigo é uma das mais claras expressões da relação com a alteridade desqualificada, apresentando-se quem vive na rua como uma manifestação ontológica e estrutural do sujeito-menos-que, uma entidade permanentemente constituída como inferior face aos tipos de sujeito positivamente valorizados pela norma estatístico-científica e pela normatividade dominantes. Informada por esta sensibilidade intelectual, esta tese assume-se como uma exploração ensaística de uma sociologia que observa as relações de poder, saber e subjetivação contemporâneas através do fenómeno dos sem-abrigo. Tomando este objeto como ponto de entrada na fase atual do modelo societal moderno ocidental, é para este último que a pesquisa se dirige.
Para alcançar este objetivo, este fenómeno é interpretado como uma forma de vida na rua, uma expressão com duas ideias fundamentais. A rua é um espaço sociopolítico de exceção permanente no qual a normatividade que rege as vidas dos cidadãos domiciliados das classes médias e elites não se aplica de facto, sendo substituída pelo exercício arbitrário do poder por parte de não-sem-abrigo quando estes interagem com sem-abrigo. Isto constitui estes últimos sujeitos em exemplos expressivos do homo sacer na medida em que deixa as suas vidas expostas em toda a sua nudez a uma aleatoriedade de decisão e ação que as pode manter, estimular ou eliminar.
São as ações de outros sujeitos que não os sem-abrigo que condicionam a forma das vidas destes últimos. Nomeadamente, esta modelação das vidas dos sem-abrigo é levada a cabo pelos diversos elementos do dispositivo médico-(a)moral de governo da vida na rua. Ainda que vários outros elementos componham esta rede, esta tese usa como ponto de entrada no dispositivo aquilo que pode ser designado como a sua parte oficial, i.e., aquela que tem como função explícita socialmente legitimada a produção de efeitos de realidade no fenómeno dos sem-abrigo. Esta parte oficial do dispositivo é composta, sobretudo, pelas instituições, atores, enunciados, espaços arquitetónicos e procedimentos das áreas da assistência (pública e privada) e da psiquiatria. Operando num regime de verdade de individualização patológica, a ação conjunta, agonisticamente articulada, destes elementos tem como objetivo e como efeito a modelação das condutas de quem vive na rua, procurando normativizar e normalizar os sem-abrigo, percebidos como sujeitos que vivem na rua por serem inerentemente anormativos (preguiçosos, mentirosos, alcoólicos, toxicodependentes) e anormais (doentes e/ou deficientes mentais). Isto concretiza-se numa sucessão de ações pelas quais é promovida a (re)subjetivação dos sem-abrigo como uma variação peculiar do homo oeconomicus neoliberal, portanto, um ser empreendedor, ativo, responsável por si mesmo. Porém, o tipo de homo oeconomicus que os sem-abrigo são estimulados (de modo mais ou menos coercivo) a ser emerge na rua e não é suposto que saia deste espaço de exceção. Deste modo, quem vive na rua deve transformar-se numa versão (para) pobre(s) do homo oeconomicus que nunca perde a sua dimensão sagrada pois permanece sempre exposto em toda a sua nudez a exercícios arbitrários de poder. Na lógica governamental do dispositivo, os sem-abrigo devem converter-se em homines oeconomicae-sacri, sujeitos-menos-que que, incorporando a sua inferioridade fundamental, passem a ser anormais e anormativos de um modo diferente, sobretudo, menos incómodo, participando nas atividades que exogenamente são decididas para eles (tratamentos psiquiátricos, cursos de formação escolar e profissional, atividades de "ocupação de tempos livres", etc.).
Para estimular esta forma de vida na rua, todas as outras formas de vida têm de ser sacrificadas, nomeadamente, aquelas que seriam passíveis de qualificar politicamente os sujeitos de um modo positivo. Deste modo, o dispositivo revela um modus operandi que, em simultâneo e com o mesmo peso relativo, é biopolítico e tanatológico. A vida dos sem-abrigo é de facto incentivada e protegida mas nem toda a vida é objeto deste esforço. Para promover a versão da vida nua que é a vida na rua, é necessário introduzir na vida um fragmento de morte, é necessário diminuir a vida, circunscrever as suas condições de possibilidade, pelo exato movimento pelo qual esta é feita manter-se. No governo da vida na rua, a vida e a morte tornam-se indissociáveis, revelando-se esta forma de ação incontornavelmente bio-tanato-política ao operar de modo a promover a sobrevivência dos sem-abrigo sem permitir que a sua vida extravase do campo delimitado da rua pela morte biológica ou pela vida como algo que não nudez.
Palavras-chave: biopolítica; exceção; poder; sem-abrigo; subjetivação.
Data de Defesa
Orientação
Resumo
Para alcançar este objetivo, este fenómeno é interpretado como uma forma de vida na rua, uma expressão com duas ideias fundamentais. A rua é um espaço sociopolítico de exceção permanente no qual a normatividade que rege as vidas dos cidadãos domiciliados das classes médias e elites não se aplica de facto, sendo substituída pelo exercício arbitrário do poder por parte de não-sem-abrigo quando estes interagem com sem-abrigo. Isto constitui estes últimos sujeitos em exemplos expressivos do homo sacer na medida em que deixa as suas vidas expostas em toda a sua nudez a uma aleatoriedade de decisão e ação que as pode manter, estimular ou eliminar.
São as ações de outros sujeitos que não os sem-abrigo que condicionam a forma das vidas destes últimos. Nomeadamente, esta modelação das vidas dos sem-abrigo é levada a cabo pelos diversos elementos do dispositivo médico-(a)moral de governo da vida na rua. Ainda que vários outros elementos componham esta rede, esta tese usa como ponto de entrada no dispositivo aquilo que pode ser designado como a sua parte oficial, i.e., aquela que tem como função explícita socialmente legitimada a produção de efeitos de realidade no fenómeno dos sem-abrigo. Esta parte oficial do dispositivo é composta, sobretudo, pelas instituições, atores, enunciados, espaços arquitetónicos e procedimentos das áreas da assistência (pública e privada) e da psiquiatria. Operando num regime de verdade de individualização patológica, a ação conjunta, agonisticamente articulada, destes elementos tem como objetivo e como efeito a modelação das condutas de quem vive na rua, procurando normativizar e normalizar os sem-abrigo, percebidos como sujeitos que vivem na rua por serem inerentemente anormativos (preguiçosos, mentirosos, alcoólicos, toxicodependentes) e anormais (doentes e/ou deficientes mentais). Isto concretiza-se numa sucessão de ações pelas quais é promovida a (re)subjetivação dos sem-abrigo como uma variação peculiar do homo oeconomicus neoliberal, portanto, um ser empreendedor, ativo, responsável por si mesmo. Porém, o tipo de homo oeconomicus que os sem-abrigo são estimulados (de modo mais ou menos coercivo) a ser emerge na rua e não é suposto que saia deste espaço de exceção. Deste modo, quem vive na rua deve transformar-se numa versão (para) pobre(s) do homo oeconomicus que nunca perde a sua dimensão sagrada pois permanece sempre exposto em toda a sua nudez a exercícios arbitrários de poder. Na lógica governamental do dispositivo, os sem-abrigo devem converter-se em homines oeconomicae-sacri, sujeitos-menos-que que, incorporando a sua inferioridade fundamental, passem a ser anormais e anormativos de um modo diferente, sobretudo, menos incómodo, participando nas atividades que exogenamente são decididas para eles (tratamentos psiquiátricos, cursos de formação escolar e profissional, atividades de "ocupação de tempos livres", etc.).
Para estimular esta forma de vida na rua, todas as outras formas de vida têm de ser sacrificadas, nomeadamente, aquelas que seriam passíveis de qualificar politicamente os sujeitos de um modo positivo. Deste modo, o dispositivo revela um modus operandi que, em simultâneo e com o mesmo peso relativo, é biopolítico e tanatológico. A vida dos sem-abrigo é de facto incentivada e protegida mas nem toda a vida é objeto deste esforço. Para promover a versão da vida nua que é a vida na rua, é necessário introduzir na vida um fragmento de morte, é necessário diminuir a vida, circunscrever as suas condições de possibilidade, pelo exato movimento pelo qual esta é feita manter-se. No governo da vida na rua, a vida e a morte tornam-se indissociáveis, revelando-se esta forma de ação incontornavelmente bio-tanato-política ao operar de modo a promover a sobrevivência dos sem-abrigo sem permitir que a sua vida extravase do campo delimitado da rua pela morte biológica ou pela vida como algo que não nudez.
Palavras-chave: biopolítica; exceção; poder; sem-abrigo; subjetivação.