Seminário #20 | «Conversas Desconfinadas»

As Humanidades em tempos pós-humanos

António Sousa Ribeiro (CES/FLUC)

17 de novembro de 2020, 16h00 (GMT)

Evento em formato digital

Relatório do Seminário

Decorreu no dia 17 de novembro a 20.ª e última sessão do ciclo de seminários “Conversas Desconfinadas”, organizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e dedicada ao tema As Humanidades em tempos pós-humanos.

A sessão teve como orador convidado António Sousa Ribeiro, diretor do Centro de Estudos Sociais e professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A sua apresentação centrou-se no conceito de pós-humanismo e do que é que falamos quando falamos de humanidades. Exemplificando com a ideia que um colega de outra área lhe passara um dia, de que o trabalho académico sobre humanidades aproximar-se-ia de ser pago para ler romances, António Sousa Ribeiro relacionou esta representação do senso comum com a visão que as humanidades por vezes passam de si próprias, de que as humanidades e as artes existem numa lógica compensatória para fazer face aos défices gerados pela modernidade e contrabalançar os constrangimentos a que o ser humano está sujeito.

Esta tese tem uma longa tradição na teoria estética ocidental e ressoou com alguma força nos últimos tempos devido à pandemia, através do discurso da irrelevância das humanidades durante a crise. Estes discursos levantam a questão de se não será o futuro das humanidades o seu passado, perante o reiterado questionamento do financiamento das atividades culturais, artísticas e da investigação em humanidades, apresentados frequentemente como desperdício de verbas já por si limitadas. Como contra-argumento, o orador frisou que as humanidades são um recurso para ampliar o conhecimento sobre a crise e sobre o mundo em geral, e que estão particularmente bem equipadas para isso.

Em primeiro lugar, a produção de conhecimento nas humanidades é por definição dialógica e está dependente de uma permanente negociação de sentidos, de processos de diálogo, confrontação, interpretação e tradução que se desenrolam ao longo de fronteiras não simplesmente pré-existentes, mas que são constituídas pela própria relação dialógica, sendo estes processos historicamente contingentes, abertos e sempre inconclusos.

Em segundo, e parafraseando a obra Cosmopolis de Stephen Toulmin, a conceção moderna da racionalidade representa um ideal contextualizado e que em contrapartida as humanidades sublinham a exigência de que o pensamento e a ação não devem ser apenas racionais, mas também razoáveis, i.e., abertos à diversidade cultural e social. Esta exigência “contextualista” é inerente ao desiderato da antropologização do saber que está na raiz de toda a conceção das humanidades.

Em terceiro, uma vez que na era da globalização os processos de informação tendem a favorecer lógicas descontextualizastes, o contextualismo radical da perspetiva das humanidades torna-se necessariamente crítico.

Em quarto, se o contextualismo não deve ser entendido como um retorno às raízes, ele muito menos significa a afirmação da precedência do local ou do nacional sobre o global – para as humanidades, na verdade, o local e o global não estão em conflito e não podem ser concebidos como categorias separadas, mas sim como conceitos mutuamente implicados.

Em quinto, a produção de conhecimento nas humanidades é autorreflexiva: está atenta ao perspetivismo inerente a todos os modos de abordagem e incorpora uma reflexão permanente sobre os meios e condições em que se desenvolve. Isto implica que seja capaz não apenas de construir um objeto do conhecimento, mas também de demonstrar nesse mesmo processo a relevância do objeto.

Em sexto, a relação das humanidades com o passado cultural e a memória cultural, os seus objetos privilegiados, é orientada por um sentido de historicidade que entende o passado da perspetiva do contemporâneo, ideia esta ilustrada nas palavras de Walter Benjamin sobre a missão da história literária: do que se trata, não é de apresentar obras literárias no contexto da sua época, mas de representar a época que delas dá conta, a nossa época, através da época a que elas nasceram.

Em sétimo e último lugar, a dimensão formativa de todo o ato cultural. Na linha da noção de contingência explorada anteriormente, o conceito de performance aponta para a essencial imprevisibilidade de todo o ato cultural e para a sua irredutibilidade a qualquer forma de pensamento determinista. Nas palavras de Erika Fischer-Lichte, “a performance mata os limites do iluminismo ao pôr em causa o modo como ele depende de imposições binárias para descrever o mundo e a sua crença de controlar completamente os processos naturais e culturais é assim posta em causa.”

O primeiro comentário da sessão coube a Fabrice Schurmans, investigador do CES, que alargou o foco da discussão para as artes. As artes tentam compreender e dar sentido a um tempo de crise, tendo o investigador destacado dois suportes: a fotografia e o texto curto. Um destes casos foi a obra coletiva Anthropocène mon amour, lançada em março deste ano e que reúne textos pós-apocalípticos que os autores vinham preparando desde 2019. A editora acabou por convidar os autores a escrever sobre a pandemia em tempo real, tendo Fabrice Schurmans e os demais começado os seus textos como diários, tentando compreender e processar o que se estava passando em seu redor, tendo o texto eventualmente evoluído para a ficção, que acabou por ajudá-los a entender o que estava a acontecer, a traduzir a realidade e a dar-lhe sentido.

 Seguiu-se o comentário de Graça Capinha, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra investigadora do CES, que começou por citar o físico Richard Feynman, que escreveu “os antigos acreditavam que a terra era o traseiro de um elefante que estava por cima de uma tartaruga que nadava num mar sem fundo. É claro que o que sustentava o mar era outra questão cuja resposta ignoravam.” Apesar de a sua área ser a física, Feynman compreendia o que a procura do conhecimento significava e a necessidade de traduzir essa procura numa linguagem, independentemente do tipo de conhecimento em questão. Esta ideia vai ao encontro do argumento de Sousa Ribeiro de que as humanidades são uma metalinguagem.

Para encerrar a sessão, a apresentação de Maria Irene Ramalho, professora catedrática jubilada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e também investigadora do CES, focou-se no que é o pós-humano, que ao fim e ao cabo significa deixar de conceber o ser humano como o centro e a medida de todas as coisas como tem sido e, por vezes, ainda continua a ser. Mas, como frisou a oradora, o CES teve essa postura na sua matriz, uma vez que sempre promoveu uma abordagem pós-humanista à investigação, ao abordar temáticas como as marginalidades, a discriminação sexual e de género, as pessoas com deficiência, as expressões de sexualidade, etc. Apresentou igualmente o exemplo da Nova Zelândia e de como o seu governo poderia ser encarado como paradigma de um governo pós-humano, uma vez que a sua Primeira-ministra, Jacinda Ardern, amamentou um bebé no parlamento, constituiu um governo maioritariamente composto por mulheres, sendo vários desses membros abertamente homossexuais, um deputado de origem africana e dois feministas Maori.


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